16 de fev. de 2013

Três versões de Judas


O primeiro, deitado, entreabriu mais uma vez as pernas e viu a peça de couro descer, de há pouco, sobre o desbaratado corpo.
O segundo, recobrando a luz proibida pela vidraça, dilatados os olhos, maxilar ofendido e retesado, quando a boca respira mais que as narinas: mares de areia no deserto.
O terceiro, feições portuguesas de outrora, quando o preto não contava, mas ainda se podia confiar num Senhor, grande visão do escuro: escritor.
Tudo é quase abstrato, traindo as normas profundas de uma democracia piedosa.


16 de jan. de 2013

No quarto do alheamento


Nas cortinas do meu quarto
as manhãs têm sido apenas sombra
velando outro, antigo e feliz rapaz
hoje pálido, peito em ruína.

A inércia possessa,
o cansaço que tenho,
(que é sombra de outro cansaço maior)
vêm-me de dentro, de um ontem
maior que o esquecimento.

Um nevoeiro que esfola os olhos.
As flores, minutos multicolores,
despencadas, desestruturadas.
Obscuramente oco de mim.

Detenho-me sem época.
Sem propósito.
E a finalidade das coisas ficou
à porta de um paraíso ausente.

E que fresco e feliz horror
o de não haver remédio!
É triste envelhecer de si próprio
sem choro, sem ódio ou desejo.

Observa a pequena aranha no teto!
É a marca da vida, talvez...
Como corre ao ver o inseto!
Matando-o, indolente, de leve.

Empreste-me, aranha, a sua armação!
A teia, fino lençol de linho funesto!
Cubra-me, silenciosa, o verso:
perfil hirto da minha imperfeição.